domingo, 8 de março de 2009
A Ordem de Soltura
Muita gente já me perguntou como é que eu tive forças para passar por certas dificuldades que fazem parte da minha história. Eu sempre pergunto: "Qual era a minha alternativa?"
Aí eu fui topar com "A Ordem de Soltura" de John Everett Millais. Este quadro, de 1746, traz uma riqueza de detalhes irritante para uma obra que não pode ter sido baseada em fotografia. Tudo bem que Everett Millais abusava muito da saúde de suas modelos, mas fiquem sabendo que a mulher da pintura tornou-se Lady Millais alguns anos depois. O pintor certamente tinha esta mulher em alta conta. Ela é o pilar de toda a composição.
Foi justamente por isso que a obra foi bastante criticada por muitos. Ao invés de notar que uma mulher pode tirar forças de onde não tem para livrar o marido da prisão, os críticos de 1746 preferiram dizer que a obra denegria os homens.
O escândalo estava aí: ela tinha o papel de salvadora para o homem (que se ampara nela), de protetora para seu filho (que acabou dormindo em seu ombro, cansado de esperar o papai, mas ainda segurando firme as flores despetaladas na mãozinha) e de provedora para o cão, que é o único que ainda tem energia para demonstrar felicidade, mesmo depois da espera, que não deve ter sido breve. Ela ainda insiste em deter o poder, porque este guarda safado vai checar a autenticidade desta ordem de soltura NA MÃO DELA. Enquanto isso os olhos se perdem na felicidade e os pés estão firmes, descalços no chão.
Como é uma obra muito dramática, muitos críticos disseram que ela estava corada de vergonha, pois teria oferecido favores sexuais a algum oficial para conseguir esta ordem. Para os críticos estava claro que a mulher não poderia ter esse poder por si só. Já quem é inglês, escocês ou um pouquinho informado sabe que quando os ingleses queriam algo de uma mulher escocesa, eles não podiam "por favor". Além disso, também é de conhecimento quase geral que o frio também causa rubor nas faces.
E eu descobri esta pintura duzentos e cinqüenta anos depois de sua execução e me pareceu uma cena familiar, algo que aconteceu por estes dias.
Esta mulher não está numa posição de poder porque lutou por isso. Ela está no poder justamente porque não teve escolha. Era isso ou reclamar da vida e aceitar que não deu conta do recado. Era isso ou perder tudo pelo que valia a pena lutar. Se ela abandonasse a luta certamente não correria risco de morrer - mas certamente já teria perdido sua vida.
Nós já conquistamos muita coisa, mas algumas de nós não esperaram a valorização para terem valor. Ela nem esperaram reconhecimento. Elas foram mulheres de valor porque, entre ser o sexo frágil e fazer o que é certo - lutar um bom combate - elas preferiram sair da cozinha. Saíram descalças, com neném no colo, seguidas pelo cachorro, morrendo de frio e tudo! Era preciso fazer o que é certo.
Olhe bem para esse quadro: É ela quem nos convence que esta prisão foi injusta. Existe todo o fator histórico dos ingleses convocarem escoceses para lutar em suas guerras... mas não é por aí. A vitória desta mulher foi justa. Danem-se todos os críticos que a difamaram, falaram mal do marido dela e reclamaram que foi muito trabalho para uma imagem banal. Não interessa. Este foi o quadro preferido de Millais. Um gênio que nos surpreende até hoje.
Soube por terceiros de uma opinião expressa por uma mulher sobre esse quadro. Ela reclamava que era uma imagem deprimente de um homem fraco e de uma mulher pobre. Ouvi outra mulher, em tom de brincadeira, falar que o olhar da mulher do quadro denunciava que ela estava entediada por ter que arcar com a fraqueza e incompetência dos outros. Ouvi outras duas mulheres falarem que não estavam tão emocionadas com a figura pois não eram mães - pois a vida era mais dura quando se tem filhos. Elas acrescentaram, com muita propriedade, que não é preciso ser mãe para ser uma mulher de valor. Isso é muito verdade.
Mas a vida é sempre dura quando se trata de fazer o que é certo sabendo que não há recompensa nisso. Encarar a virtude como um dever, e não como um luxo reservado a momentos de prosperidade, é complicado.
Então eu me dirijo às mulheres que estão na cozinha, que não acompanham os intelectuais em suas divagações, que só conseguem passar batom no ônibus - quando vale a pena -, que pensam demais na família e nem sempre conseguem investir em suas aspirações para o futuro. Olha só, mulheres - alguém lhes passe o recado porque acesso à internet pode ser difícil pra vocês: talvez você não seja aquela vitoriosa, capa de revista, magra, perfumada e poderosa. Mas pense bem:
É o medo que define as lutas que você escolhe ou é a experiência?
Você está fazendo o que é certo?
Você entende que algo que não é sua culpa continua sendo sua responsabilidade?
Seu dever como SER HUMANO - porque todo mundo tem dever (caso queira ter direitos) - está cumprido?
Então, a você, sim:
Feliz Dia da Mulher
E que Deus lhe dê uma Ordem de Soltura dessa prisão de preconceitos, de tiranias sobre sua aparência e de ditadura sobre o que "sucesso" significa.
Minha ambição é ser como você.
A virtude é sua. Você sabe que ela está lá. Não precisa ninguém lhe dizer.
Mas... Pôxa! Uma rosa bem que cairia bem, não é?
beijos.
Assinar:
Postagens (Atom)